Fui apresentado a Filosofia sem antes a ter conhecido. Havíamos tido alguns encontros esporádicos no Ensino Médio. Falavam-me de Platão, Aristóteles e outros. Pouco compreendia. Acredito que meus professores compreendiam menos que eu.
Logo de inicio, nosso encontro não foi nem um pouco agradável. Ela era densa e me parecia bastante fechada em si mesma. Não conseguia ver nela nada de prático. Debruçava-me sobre aqueles que buscavam compreende-la. Por noites afins ficava a imaginar que ela poderia ser um pouquinho mais acessível. Porém seus amigos criaram em torno dela um muro com um belo portão. Onde somente eles pareciam ter a chave que dava acesso ao seu coração.
De longe eu a olhava. Tinha medo de me aproximar um pouco mais. Como conversarmos com alguém que não compreendemos? Dar o primeiro passo? Ótimo! Mas para dar um primeiro passo é necessário que você tenha ao menos alguma segurança. Infelizmente eu não tinha.
Por muito tempo fomos assim: distantes. Se ela era amiga dos sábios, para mim ela era inimiga dos humanos. Somente os racionais conseguiam desvendar o que se passava em sua alma. Escreviam livros e livros sobre aquilo que ela era, ou pelo menos deveria ser.
Aos poucos me vi cercado de volumes densos de leitura incompreensível. Seria eu destituído de inteligência para compreender o que aqueles seus amigos escreviam a seu respeito? Por muitas tardes pensei que sim.
Mas um dia tomei coragem. Aquela triste situação que nos separava não poderia continuar. Resolvi por fim naquela novela mal começada. Aproximei-me dela. Olhei bem no fundo de sua alma. Falei a verdade que habitava meu ser. Não queria ter uma amizade racional com ela. Se fossemos ser amigos, seríamos amigos através da humanidade que habitava nossos laços de um afeto mal resolvido.
Ela não me disse nada. Mas compreendi que palavras não são necessárias quando o silêncio pronuncia o que não pode ser expresso. E assim recomeçamos nossa amizade. Tornei-me seu confessor. Ela falou-me das noites tristes que passava sozinha em sua casa, tentando compreender o que dela escreviam. Confessou-me que tentavam fazer dela uma espécie de objeto reflexivo. Muitas vezes ela deixou de lado volumes incompreensíveis de analises obscuras, que sobre ela escreveram.
Disse-me que se sentia muito só. Tinha sede do cotidiano, da vida e de poesia. E com ela partilhei meus rabiscos poéticos. Ela parecia gostar e sorria para mim. Conversávamos sobre nossos tempos de infância. E me falava de como nasceu. Seu cotidiano nunca fora compreendido por aqueles que a conheciam apenas de longe.
Fiquei bastante espantado quando ela me disse que muitos daqueles que se diziam seus amigos nunca haviam olhado em seus olhos e compreendido que ela era tão humana quanto eles. Por vezes a encontrei triste. E quando perguntava o motivo de tamanha tristeza ela respondia com os olhos lacrimosos: “Esqueceram novamente da vida quando escreveram sobre mim”.
Certa vez pediu minha ajuda para fazermos uma limpeza em sua casa. Recolhemos livros que nem Deus conseguiria entender. Guardamos tudo em caixas e mais caixas. Aos poucos aquela casa triste e obscura foi ganhando tonalidades de vida. Trocamos as cortinas, colocamos flores nos vasos, compramos livros de poemas... Plantamos um lindo jardim.
Estamos a cada dia nos tornando mais amigos. Ontem mesmo a visitei. Ela estava pensativa. Contou-me que haviam escrito um novo livro sobre sua vida. Disse-me que tem se sentido velha. Dei risadas e lhe disse para não se preocupar com isso, pois ela é bem mais nova que muitos de seus autores...
Flávio Sobreiro é Filósofo pela PUCCAMP, Teólogo pela FACAPA, Escritor e Poeta.
Estudante de Filosofia Clínica.
Autor do livro: Fábulas para Nossa Criança Interior, publicado pela editora CBJE, com prefácio de Will Goya.
Atualmente está concluindo seu segundo livro: O Diário de Edward.
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